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segunda-feira, 23 de junho de 2025

Concha Marinha – Santiago Pontes e os abismos poéticos da existência


Santiago Pontes, camocinense com alma filosófica e coração marítimo, entrega ao leitor em Concha Marinha uma obra de duplo mergulho: poesia e prosa entrelaçadas por um fio temático que atravessa toda a sua produção — o mar. Depois de Homem do Mar e Oceano de Mim, este livro, publicado de forma independente em 2023, reafirma o elemento marítimo como metáfora existencial, território de reflexão e espelho do eu.

Dividida em duas partes — a primeira dedicada à poesia, a segunda aos contos — Concha Marinha é, desde o título, um convite a escutar o som interno das coisas. A concha, símbolo do que é ao mesmo tempo frágil e profundo, torna-se aqui um objeto poético que guarda não apenas o rumor do oceano, mas também o eco dos dilemas humanos. Santiago escreve como quem recolhe pedaços de vida na areia e os transforma em texto.

A poesia da obra é confessional, filosófica e livre — não presa à rigidez formal, mas ancorada numa busca constante por sentido e beleza. Com linguagem coloquial e afetuosa, Santiago provoca e acolhe, reflete e questiona, oferecendo ao leitor versos que se aproximam como conversa e, ao mesmo tempo, reverberam como pensamento. É uma escrita que não teme os grandes temas — amor, solidão, morte, tempo —, mas os aborda com simplicidade e profundidade, como se cada poema fosse uma âncora lançada ao fundo do ser.

Já na segunda parte, dedicada à prosa, os contos revelam o domínio criativo do autor: há imaginação, fantasia, e uma habilidade peculiar de criar narrativas onde o cotidiano e o insólito se encontram. As histórias transitam entre o real e o fantástico, mantendo viva a provocação filosófica que permeia toda a obra. 

Concha Marinha é um livro para ser lido com vagar, como quem caminha pela praia recolhendo o que as marés deixaram. É também um convite a pensar a vida com leveza, mas sem superficialidade — marca dos bons escritores e dos bons filósofos. Santiago Pontes prova, com esta obra, que o mar continua a ser uma fonte inesgotável de perguntas e poesia.

SILVA, Marcello. 2025

domingo, 22 de junho de 2025

Poemas Ébrios – Sousa Filho e a embriaguez consciente da palavra


Poemas Ébrios, do parnaibano Sousa Filho, é uma obra de travessias — de estilos, de vozes, de estados da alma. Com 139 páginas e publicação independente em 2024, o livro revela um poeta de múltiplos registros e intenções, que transita com naturalidade entre o lirismo apaixonado, o tom elegíaco, a sátira política e o existencialismo inquieto. Uma poesia que, mesmo ébria, sabe muito bem onde pisa.

O título da obra já antecipa sua essência: poemas gestados sob a influência simbólica (e literal) do álcool, mas que não se perdem na embriaguez — antes, encontram nela uma lente para enxergar o mundo com maior nitidez e emoção. A palavra, aqui, é fermentada no tempo e destilada na sensibilidade. É poesia que flui como vinho velho em taça nova.

Sousa Filho recusa qualquer engessamento estético. Em sua escrita há traços de romantismo, realismo, parnasianismo, simbolismo, modernismo e até concretismo. O poeta desafia as escolas, hibridizando estilos com naturalidade e dando voz a um sujeito lírico que ora filosofa, ora confessa, ora denuncia. A linguagem percorre do erudito ao coloquial, criando um jogo rítmico e expressivo que enlaça leitor e poema num mesmo sopro.

O cordel, raiz importante da tradição nordestina, também marca presença em sua métrica e musicalidade, assim como a crítica social e o amor à terra natal, cantada com orgulho e melancolia. Há poemas fúnebres que tocam fundo, há sátiras que fazem rir e pensar, e há versos que sussurram com uma beleza quase mística. Em tudo, uma entrega sincera do poeta à palavra.

Ler Poemas Ébrios é participar de um banquete poético onde se serve o que há de mais humano: dores, delírios, utopias, perdas, encantamentos. Sousa Filho é um poeta que escreve como quem vive — intensamente. E nos brinda com uma poesia honesta, desassossegada, feita para ser sentida antes de ser rotulada.

SILVA, Marcello. 2025

Onde Estão Meus Girassóis? – Carvalho Filho e a delicadeza em tempestade


Onde Estão Meus Girassóis?, obra de estreia (em livro solo) do poeta parnaibano Carvalho Filho, publicada pela Editora Tremembé em 2022, é um livro que pulsa entre a técnica e a emoção, entre o clássico e o rebelde, entre o grito e o sussurro. Com 95 páginas que transbordam lirismo e inquietação, Carvalho revela-se um poeta de rigor formal e sensibilidade vibrante — um construtor de versos que respeita a métrica, sem abandonar a alma.

Influenciado por figuras como Van Gogh — cuja admiração transparece já no título e na simbólica capa do livro —, Carvalho faz dos girassóis uma metáfora persistente de busca, luz e esperança. Mas não uma esperança ingênua: seus poemas estão frequentemente atravessados por sombras, tempestades e a sensação de um mundo em ruína. Ainda assim, há beleza. Ainda assim, há flores.

A poesia aqui ora dança no compasso preciso das rimas e ritmos, ora explode em versos livres. Em muitos momentos, o leitor perceberá um “múltiplo de eus” pessoano, com ressonâncias do existencialismo melancólico de Florbela Espanca e da visceralidade de Augusto dos Anjos.

O que une toda essa pluralidade estética é uma marca autoral rara: a busca por um “eu” lírico que, mesmo desiludido, insiste em amar, em criar, em esperar seus girassóis. Em sua poesia, há um desalento manso, um desejo de transformação que se esconde na forma, e um trabalho artesanal com a palavra que impressiona, sobretudo em tempos de dispersão poética.

Carvalho Filho chega ao cenário literário piauiense com força e frescor. Onde Estão Meus Girassóis? é um livro que merece ser lido com calma, com olhos atentos e coração aberto — porque seus versos, embora construídos com rigor, sabem sangrar quando necessário. E é nesse paradoxo — entre a ordem e a paixão — que reside sua beleza mais profunda.

SILVA, Marcello. 2025

sábado, 31 de maio de 2025

Lançada a 4ª edição da Feira Literária de Barra Grande, em Cajueiro da Praia/PI


O lançamento da IV FLIBG – Feira literária de Barra Grande, na Villa dos Poetas Pousada, no povoado de Barra Grande/ Cajueiro da Praia/PI, na quinta feira(29), contou com a presença de autoridades, como a vice prefeita da cidade, Nathália Régia, Secretária de Cultura, Marília e a Secretária de Educação do município, Elivânia Damasceno além de professores/as, escritores e escritoras e representantes de parceiros do evento como a SEDUC /PI, SEBRAE, Sesc Caixeiral, IFPI/Parnaíba. Os homenageados desta edição, a escritora Sônia Terra, enviou mensagem de agradecimento e apoio a feira e o escritor homenageado Claucio Ciarlini, compareceu ao evento .

A Coordenadora da FLIBG, Josilene Neres, destacou a importância da Feira, que vai conectar escritores e escritoras regionais de todo o país e que têm como um dos objetivos, incentivar crianças e jovens estudantes e a comunidade em geral, à leitura com diversas atividades durante três dias, além de movimentar o turismo e a economia local com a comercialização de livros, artesanato, gastronomia e rede hoteleira: “teremos a presença de grandes escritores e lançamentos de livros em rodas de conversas e palestras, contação de histórias, shows, performances literárias e a participação de escritores como o poeta piauiense que atualmente mora em São Paulo, Rubervam Du Nascimento e o poeta maranhense Fernando Abreu.

As novidades desta FLIBG incluem também o prêmio de literatura Kenard Kruel que vai contar com a premiação orquestrada pela ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS, e o lançamento do livro de redações dos alunos de Cajueiro da Praia premiados na edição passada da feira, e o 2º Concurso de Redação. Josilene também citou a doação de livros e o cheque livros, por meio de parceria com a Secretaria Estadual de Educação do Piauí, um grande destaque da Feira, que segundo a escritora “vai facilitar aos alunos da rede pública a aquisição de publicações e grandes obras que muitos destes jovens não teriam condições de comprar”. A feira será em agosto e até lá muitas novidades ainda serão anunciadas, concluiu a cordenadora da FLIBG.

A IV Feira Literária de Barra Grande será realizada de 14 a 16 de agosto de 2025




Serviço:
IV FLIBG – BARRA GRANDE
14 A 16.08.2025
Contatos/Entrevistas
Edna Maciel – 86 9 8147 55 68
Josilene Neres -​86 9 8190-8097

sábado, 17 de maio de 2025

A Borda do Mar de Riatla – Diego Mendes Sousa e a reinvenção lírica do ser


A Borda do Mar de Riatla é uma travessia mitopoética que funde a memória, o mar, o mito e o amor numa só correnteza. Diego Mendes Sousa, poeta piauiense de rara sensibilidade e vasto repertório estético, confirma nesta obra sua posição de herdeiro dos transgressores da língua — à maneira de Manoel de Barros —, mas com uma lírica de densidade única, mais épica, mais luminosa.

Composto por 29 poemas divididos em dois capítulos — Borda d’Água e Altos-Mares, o livro é ilustrado com obras de Paul Gauguin, o que já indica seu temperamento estético: o exílio criativo, o desejo do longínquo, a reinvenção da beleza em territórios interiores. Mas ao contrário de Gauguin, que foi à Polinésia buscar inspiração, Diego mergulha em sua Parnaíba natal para encontrar o mar íntimo que o move. Parnaíba não é apenas lugar, é personagem, é elo genealógico, é raiz de todas as águas do autor.

No poema “Evocação da Parnaíba”, o poeta reconstrói a cidade com a matéria da memória, exaltando figuras históricas e familiares como quem ergue um altar afetivo. A Parnaíba dos vareiros, dos poetas, dos avós sábios, das ruas antigas e do cais torna-se, sob sua pena, um espaço quase mitológico, onde o tempo é cruzado com os pés calejados da infância e da perda. A linguagem é simultaneamente grandiloquente e confessional — o verso é largo, mas a emoção é funda.

A geografia poética de Riatla remete à mítica Pasárgada de Manuel Bandeira: ambas são territórios simbólicos criados pelo poeta para abrigar aquilo que o mundo real não comporta — desejos, memórias, ausências e utopias. Riatla, contudo, é mais líquida, mais fluida: mistura rio e mar, mito e memória, Altair (a musa) e Atlas (o peso do mundo). Ao contrário da Pasárgada idílica, Riatla é também um lugar de dor e saudade, como se o próprio chão se desfizesse em água — elemento central que percorre toda a obra como fonte de origem e dissolução. O verso “Eu vivo como o mar, bebendo os rios” do também piauiense R. Petit, poeta conterrâneo de Diego, condensa-se o espírito do livro: fusão, desejo, continuidade...Parnaíba...Piauí.

À Borda do Mar de Riatla é um canto inaugural, uma reza modernista, um grito sagrado. Nele, Diego Mendes Sousa mostra que é possível, mesmo no século XXI, construir uma poesia que recusa o raso, que convoca o sublime e que ancora a linguagem num novo humanismo poético.

SILVA, Marcello. 2025

Resenha Literária: O Argonauta de Si Mesmo – F. Gerson Meneses e a viagem interior do poeta


Em O Argonauta de Si Mesmo, o poeta piauiense F. Gerson Meneses convida o leitor a lançar-se em uma travessia poética profundamente pessoal e universal. Inspirado na figura mitológica dos argonautas — os navegadores da embarcação Argo, liderados por Jasão na busca pelo Velocino de Ouro — Meneses assume o leme de uma jornada interior, onde o oceano é o próprio eu, e os poemas, as ilhas, vulcões e tempestades do inconsciente.

Após o sucesso de Versos Retos de um Poeta Torto (2018), o autor volta mais maduro, mais afiado, mais visceral. Se a obra anterior já revelava um poeta de grande domínio da linguagem, aqui ele expande seus horizontes, compondo 58 poemas distribuídos em cinco capítulos: Devaneando, Natureza, Encontros, Vida e Ensaio de Cordel. São seções que, como mapas náuticos, conduzem o leitor por experiências sensoriais, filosóficas e afetivas que vão do concreto ao onírico.

A beleza plástica da obra, com arte de capa simbólica (um homem a pensar em sua embarcação solitária) e ilustrações de Jason Fontenele, reforça o tom reflexivo que permeia os versos. O prefácio, assinado por Claucio Ciarlini, escritor e historiador, aponta com precisão a força do livro: sua capacidade de provocar, comover e transformar, mantendo viva a chama crítica frente aos absurdos políticos e sociais dos últimos anos — um eco contemporâneo do que fez Carlos Drummond de Andrade em A Rosa do Povo.

Meneses homenageia paisagens, escancara memórias, fala de amor mesmo quando há dor, e nunca esquece o torrão natal — como fez Da Costa e Silva ao cantar o Piauí. Sua escrita, por vezes romântica, por vezes concreta, nunca se aparta da emoção verdadeira. A poesia aqui é resiliência, é cicatriz e também sopro de esperança. É, como escreveu Octavio Paz, “um ato vital”.

O Argonauta de Si Mesmo não é apenas um livro: é um chamado. Uma viagem que, ao término, nos faz perceber que o maior destino da poesia é o encontro com aquilo que ainda pulsa em nós — mesmo quando o mar está revolto.

SILVA, Marcello. 2025

Análise do livro "A Preparação do Escritor" de Raimundo Carrero (Iluminuras, 2000)

Detalhes da obra:
Nome: A Preparação do escritor
Autor: Raimundo Carreiro
Editora: Iluminuras
Ano: 2000
224 páginas
Tamanho: 14x21
ISBN: 978-85-7321-301-0

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Com base na obra, o narrador desempenha um papel fundamental na construção da percepção e da experiência do leitor, utilizando uma série de técnicas e estratégias para conduzi-lo através da narrativa de forma planejada, muitas vezes sutil e sem que o leitor se aperceba
O narrador trabalha diretamente com a duração psicológica do leitor, podendo acelerar ou retardar a narrativa. As cenas, por exemplo, dão velocidade ao texto, enquanto os cenários, pela beleza e fulgor, retardam os movimentos internos da obra. Esse retardamento é estratégico, indicando os caminhos da história ou do enredo e trabalhando a mente do leitor, que é naturalmente ingênuo e precisa ser seduzido e surpreendido.
Uma das principais funções do narrador é conduzir o leitor passo a passo, mesmo que este não perceba. O narrador pode preparar surpresas para o leitor, ou utilizar comentários e digressões para influenciar a crença do leitor, como no caso de Capitu, onde o narrador faz um comentário direto para levar o leitor a acreditar na traição. Na digressão, o narrador se afasta do objeto narrativo, levando o leitor por outros caminhos.
A relação entre autor e narrador é crucial, pois o autor pensa a ideia e recorre ao narrador para contar a história. O autor premedita, e o narrador conta, e essa premeditação pode ser usada para gerar dúvida no leitor. O narrador é o personagem mais importante criado pelo autor para tornar o abstrato concreto e deve usar o máximo de sofisticação para chegar ao leitor com o máximo de simplicidade. A simplicidade, aliás, causa leveza no leitor, que é conquistado e seduzido pela maravilha do texto.
O narrador age estrategicamente, muitas vezes escondendo informações do leitor para que ele as descubra no desenvolvimento do texto. Ele seduz e encanta, conduzindo o leitor pelos "olhos" da primeira leitura, que pode ser perigosa e enganosa. O mérito do novelista é esconder. Essa habilidade do narrador de parecer dizer uma coisa e levar o leitor para outra é um conhecimento secreto da intimidade da ficção. Os artificios e as estratégias são a pulsação da obra, o jogo do narrador.
A manipulação da perspectiva é uma técnica poderosa. Em Dom Casmurro, por exemplo, há uma narrativa em "falso ângulo aberto", onde o narrador duplo (Dom Casmurro e Bentinho) confunde o leitor com suas armadilhas. O ponto de vista dos dois é o mesmo (acusar Capitu), mas a técnica narrativa se divide: um acusa (Bentinho, oculto), o outro comenta e distrai (Dom Casmurro, onisciente). O narrador astuto pede a cumplicidade do leitor em suas tramas. A própria Capitu é apresentada como uma personagem de criação indireta, existindo apenas na mente de Bentinho, o que molda a percepção do leitor sobre ela. A dúvida sobre a traição de Capitu não é um problema de enredo, mas de técnica narrativa que impressiona o leitor.
Em A hora da estrela, Clarice Lispector usa o narrador Rodrigo S.M.., que conta a história e, em certos momentos, usa a voz feminina da autora. Essa inversão da voz narrativa é uma técnica sofisticadíssima que parece simples para o leitor. O narrador também dialoga com o leitor usando a segunda pessoa do plural ("vós"), criando distanciamento e cumplicidade. A escolha dos pronomes ("eu", "nós", "a gente") afeta a proximidade do narrador com o leitor.
Em O Pai Goriot, Balzac usa um narrador cronista que inicia o romance com comentários e cenários, criando uma atmosfera e pedindo uma respiração lenta e tranquila do leitor. Ele apresenta personagens e digressões para envolver o leitor sutilmente. O narrador tem um incrível onipresença e domina tudo. Balzac também utiliza a criação indireta de personagens, apresentando Goriot através dos olhos psicológicos da senhora Vauquer, o que torna o personagem complexo e capaz de surpreender o leitor.
O narrador tem ampla liberdade para mudar o foco narrativo dentro de uma mesma obra, o que aumenta a sofisticação e a adesão do leitor. Mesmo mantendo o foco narrativo (pessoa gramatical), o ponto de vista (estrutura psicológica do personagem ou do narrador) pode se alterar, mudando a percepção do leitor. O ponto de vista representa o tom que a narrativa deseja alcançar.
Além de narrar, o narrador pode permitir que outros personagens também "narrem" ao esconder informações, especialmente do narrador oculto e do leitor, seduzindo-o. Quando os olhos dos personagens se encontram, cria-se uma "narrativa por intersecção", comum a ambos, com a ajuda do narrador. O leitor, seduzido pelo narrador e pelos personagens, chega a imaginar que está também criando o texto.
A montagem da narrativa, comparada à edição de um filme, é controlada pelo narrador e influencia a emoção estética do leitor. A distribuição de cenas, diálogos e cenários, os cortes e as elipses, tudo contribui para envolver o leitor. O cenário não é apenas descrição, mas um artifício para atrair o leitor para a armadilha do narrador.
A habilidade e a sutileza do narrador são essenciais. Um bom narrador faz o leitor caminhar em várias direções, seduzindo-o através da técnica do foco narrativo e dos pontos de vista. A sutileza pode ser tanta que o leitor mal percebe a narrativa escondida em uma frase, como em Dom Quixote. O uso de títulos ambíguos também é uma estratégia para desviar a atenção do leitor, conduzindo-o para um caminho oposto sem perder o foco principal.
Em suma, a construção da percepção e da experiência do leitor é um processo estratégico e técnico realizado pelo narrador, que utiliza o controle do ritmo, a manipulação da perspectiva, a arte de esconder e revelar informações, e a interação implícita ou explícita com o leitor para seduzi-lo, surpreendê-lo, envolvê-lo emocionalmente e conduzi-lo através da história.

Tópicos Essenciais da Criação Literária, segundo Carrero:

O que distingue o narrador do autor em uma obra literária?

O texto enfatiza que o narrador não é o autor. Enquanto o autor é a pessoa que escreve a obra, o narrador é a voz escolhida pelo autor para contar a história. O narrador é visto como o "grande personagem do autor". Essa distinção é crucial, pois o ponto de vista do narrador (sua opinião, estrutura psicológica, comportamento) não necessariamente coincide com o ponto de vista do autor. A obra "A hora da estrela" de Clarice Lispector é citada como exemplo, onde Rodrigo S.M. é o narrador, representante da autora, mas não a própria Clarice.

Qual a diferença entre ponto de vista e foco narrativo?

Embora frequentemente confundidos, ponto de vista e foco narrativo são conceitos distintos. O foco narrativo refere-se à pessoa gramatical escolhida pelo narrador (primeira, segunda ou terceira pessoa), ou outras "pessoas narrativas" não reconhecidas na gramática tradicional. O ponto de vista, por sua vez, é a perspectiva, a opinião, a estrutura psicológica do personagem através de sua maneira de agir. É possível ter múltiplos pontos de vista com um único foco narrativo ou diversos focos narrativos com diferentes pontos de vista.

Como a criação de personagens pode ser abordada?

A criação de personagens não surge pronta, mas é um processo que envolve estudo, pesquisa e exercício constante. O texto sugere a observação do cotidiano, de pessoas ao redor (família, vizinhos, colegas) como fontes de inspiração. A materialização da personagem se dá através da elaboração de perfis: físico, psicológico e físico-psicológico. O perfil físico descreve características externas com precisão, por vezes com nuances literárias. O perfil psicológico foca no comportamento e reflexões internas do personagem, sem a necessidade de descrição física. O perfil físico-psicológico combina a descrição física com traços que revelam o comportamento e a profundidade psicológica.

Qual a importância do documento e da invenção no processo criativo?

O texto adverte sobre a tentação de ser meramente documental na escrita. Embora a pesquisa e o material coletado (recortes de jornais, fotos, anotações) sirvam de base e "conteúdo material", o objetivo final deve ser a invenção, a transcendência do concreto para o artístico e literário. O documento deve ceder lugar ao estético, transformando o ofício em arte. É preciso se impressionar, registrar, mas não sucumbir à cópia, buscando sempre o "absolutamente artístico".

De que forma a prática e a disciplina influenciam a escrita?

A prática constante e a disciplina são fundamentais para a criação literária. Assim como artistas plásticos e músicos se dedicam a exercícios diários, o escritor precisa escrever continuamente, mesmo sem inspiração imediata (Impulso). O texto enfatiza que a criação também pode ser dominada e tem didática. A prática ajuda a destravar o processo criativo, a encontrar a própria voz e a dominar as técnicas. É através do "escrever, reescrever, rasgar, jogar fora, destruir" que se alcança a maestria.

Como os diferentes tipos de cenário contribuem para a narrativa?

O texto cataloga quatro tipos de cenários: natural, humano, psicológico e metafórico. O cenário natural descreve o ambiente físico, muitas vezes com elementos imagéticos e comparações. O cenário humano foca nos espaços e interações sociais. O cenário psicológico reflete o estado mental e emocional do personagem no ambiente. O cenário metafórico utiliza uma imagem ou conceito para ocupar o lugar do cenário natural, sem ser uma simples comparação, mas uma substituição de significado. O estudo e o uso consciente desses diferentes cenários, em alternância com as cenas, contribuem para o ritmo e a profundão da narrativa.

O que são metáfora e símile e qual sua relevância na escrita?

Metáfora e símile são figuras de linguagem importantes para o ficcionista. O símile compara uma coisa a outra explicitamente, utilizando termos como "como" ou "parece". Já a metáfora substitui um objeto por outro, criando uma identificação direta, sem a presença de termos comparativos. O texto, citando Autran Dourado e Caetano Veloso, esclarece que a metáfora substitui com precisão o objeto, admitindo interpretações, enquanto o símile compara e fecha o ponto de vista. O domínio dessas técnicas enriquece a linguagem e a capacidade de criar imagens vívidas na mente do leitor.

Como a montagem e a pulsação narrativa afetam a experiência do leitor?

A montagem do texto, a alternância entre cenas (mais rápidas) e cenários (mais lentos), e o uso estratégico do foco narrativo e ponto de vista criam a pulsação narrativa. Essa pulsação influencia a "duração psicológica" do leitor, ou seja, a forma como ele percebe o tempo ficcional. Ao dosar a velocidade da narrativa, o autor conduz o leitor, escondendo ou revelando informações, criando expectativa e envolvimento. A escolha entre focar em uma cena detalhada (foco fechado) ou apresentar uma visão mais ampla (foco aberto, panorâmica) também contribui para essa dinâmica.

Fonte: CARRERO, Raimundo. A Preparação do Escritor. Iluminuras, 2000.


segunda-feira, 21 de abril de 2025

Resenha Literária: Coleção Vozes do Piauí – Uma cartografia poética da diversidade


A Coleção Vozes do Piauí, idealizada pela Editora Tremembé no âmbito do Projeto Vozes do Piauí, é uma iniciativa profundamente enraizada no espírito da coletividade e da resistência literária. Com curadoria de Ana Ferreira, Gabriela Sena (in memoriam), Marcello Silva e Zilmar Júnior, e sob a coordenação do escritor Alexandre César Mendes Araújo, esta série de quatro coletâneas — Vozes Femininas, Vozes da Periferia, Vozes do Povo Negro e Vozes Ribeirinhas — representa um marco na história recente da literatura piauiense.

Mais do que uma reunião de textos, trata-se de um gesto político e poético: reunir autoras e autores de diferentes territórios e identidades para ecoarem, juntos, o que por muito tempo foi silenciado. Tal como nos versos de Torquato Neto — “a memória que suja a história que enferruja o que passou” —, essas vozes reconfiguram o passado e propõem novos significados ao presente, tornando o poema não um refúgio, mas uma intervenção no real.

Cada coletânea carrega o frescor e a densidade de narrativas poéticas que se entrelaçam, explorando temas como ancestralidade, pertencimento, resistência feminina, desigualdade social e a poética dos rios e das margens. São vozes que, como as de Torquato, H. Dobal ou Da Costa e Silva, não pedem licença para existir — ocupam, denunciam, encantam.

A pluralidade de estilos, que vai do verso livre ao metrificado, da prosa poética ao lirismo narrativo, revela não apenas a riqueza criativa do Piauí, mas a maturidade de um projeto literário que sabe ouvir e oferecer escuta. A força dessa coleção também reside na sua acessibilidade: exemplares distribuídos gratuitamente aos autores, escolas e às bibliotecas, num gesto de partilha que rompe com o elitismo editorial e insere a literatura no cotidiano das comunidades.

Aprovado pelo SIEC e patrocinado pelo Armazém Paraíba, o projeto destaca a urgência de se manter e ampliar os incentivos públicos à cultura. Sem tais políticas, muitas dessas vozes permaneceriam à margem. Vozes do Piauí mostra que a literatura, quando nasce do coletivo, é capaz de reinventar a memória, ampliar o pertencimento e transformar o silêncio em canto.

SILVA, Marcello. 2025


domingo, 13 de abril de 2025

Resenha Literária: Entre Gerações – Diálogos que atravessam o tempo


A coleção Entre Gerações é uma ponte construída com palavras, entre autores de diferentes idades, experiências e olhares, unidos por um propósito comum: fazer da literatura piauiense um espaço de encontro e continuidade. Idealizada por Claucio Ciarlinie José Luis de Carvalho em 2018, e composta por três volumes (Contos entre Gerações, Poemas entre Gerações e Crônicas entre Gerações), a série torna-se um marco editorial em Parnaíba e no Piauí, reunindo 78 autores numa verdadeira celebração da diversidade literária.

Desde nomes consagrados como Alcenor Candeira Filho e Elmar Carvalho, até jovens talentos que florescem nas margens da escrita, a coleção representa o espírito da coletividade, evocando a proposta do modernismo brasileiro que, em 1922, rompeu barreiras para dar espaço a novas vozes. A ideia de “gerações que conversam” lembra também o projeto Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, organizado por Ítalo Moriconi, onde o tempo literário é menos uma linha cronológica e mais uma rede de afetos, influências e partilhas.

O primeiro volume, Contos entre Gerações, abre a trilogia com tramas diversas que mergulham na ficção e no cotidiano. O segundo, Poemas entre Gerações, lançado em meio à pandemia, resgata a lírica como resistência e ternura em tempos difíceis, mantendo viva a palavra mesmo no isolamento. Por fim, Crônicas entre Gerações encerra o ciclo com textos que oscilam entre a memória e o agora, construindo pontes emocionais com o leitor.

A culminância da coleção num evento coletivo, em dezembro de 2021, sintetiza seu verdadeiro sentido: não apenas publicar, mas reunir. Entre Gerações tornou-se um ato de eternizar ideias e vínculos — uma obra que, ao se inscrever na história da literatura piauiense, cumpre o papel maior da arte: deixar raízes para o futuro florescer.


Resenha Literária: Nau Lírica – Uma travessia de vozes e versos


Nau Lírica é mais que uma coletânea literária — é uma embarcação simbólica, um projeto de fôlego que conduz 75 autores por águas profundas de sentimentos, estilos e linguagens. Lançada em novembro de 2024, na Academia Parnaibana de Letras, e organizada pelo coletivo Piauí Poético, a obra é uma ode ao fazer literário colaborativo, à potência da diversidade e à força da escrita que nasce da margem para alcançar o oceano.

Com organização de Claucio Ciarlini, Jardel William, Lírio Reluzente e Wilson Maudonado, e projeto gráfico de Antônio Soares, a coletânea destaca-se pela multiplicidade: homens, mulheres, autores consagrados e estreantes, todos reunidos numa mesma nau que cruza o tempo e o espaço da criação literária. A imagem da "nau" evoca referências como Mensagem, de Fernando Pessoa, onde o mar também representa o destino dos que ousam imaginar. Aqui, no entanto, não se trata de uma nau solitária, mas coletiva — símbolo da partilha e do pertencimento.

A pluralidade de estilos — do lírico ao narrativo, do poético ao reflexivo — são caleidoscópios literários em que múltiplas vozes emergem para compor um retrato da produção de uma geração. Nau Lírica é igualmente uma fotografia poética e pulsante da literatura contemporânea piauiense, marcada por um desejo de expressão e renovação.

A coletânea insere-se no rico cenário literário do Piauí, dando continuidade a movimentos que exaltam a literatura regional como espelho de identidades e territórios. É, como disse o próprio Claucio Ciarlini, “uma verdadeira nau que navega pelas águas da literatura”, reunindo tripulantes de diferentes rotas num mesmo destino: a arte de escrever

SILVA, Marcello. 2025

Resenha Literária: Letras de Amarração II – Literatura viva da Planície Litorânea


A obra Letras de Amarração II é mais que uma coletânea literária; é um manifesto de pertença, memória e continuidade. Neste segundo volume da série, quinze autores — oriundos de Luís Correia, ou que ali fincaram suas raízes — entregam ao leitor um mosaico de sentimentos, saberes e vivências, entrelaçados pela geografia simbólica da Amarração.

Este livro coletivo celebra não apenas o espaço físico da Planície Litorânea do Piauí, mas a permanência de vozes que narram o cotidiano, a cultura e o imaginário popular da região com a sensibilidade da tradição oral reinventada em palavra escrita, dando protagonismo a uma literatura que emerge das margens com força própria.

A pluralidade estilística dos autores, muitos deles novos talentos ao lado de nomes já consolidados, evidencia a potência dos projetos colaborativos. Como em Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa, há uma travessia simbólica em curso — entre o passado e o presente, o regional e o universal, a memória e a criação.

A obra também revela a importância das políticas públicas (Lei Paulo Gustavo) e incentivos à literatura local, destacando o papel fundamental de coletivos e editoras regionais na propagação da literatura piauiense. Letras de Amarração II é, portanto, um farol para a produção cultural do litoral nordestino, projetando vozes que merecem ecoar cada vez mais longe.

Organizadores: Antonio José Sales e Josiel Barros
Autores: Antonio José Sales, Daltro Paiva, Dêvia Lima, Edna Santos, Floriza Sales, João Francisco de Oliveira, José Ildegardo Saraiva Silva, Josiel Barros, Joyne Rodrigues de Oliveira, Maria Beatriz Sobrinho de Souza, Maria da Luz de Carvalho Santos, Marli Pereira Barros, Moisés Pereira dos Santos, Solange Veras Roque e Trícia Tiemy Inatomi Saraiva.

SILVA, Marcello. 2025